Depoimento de SuperAção: luta, luto e recomeço

Esse não é um texto com informações científicas, ou dicas úteis, esse texto é apenas um registro da minha chegada no Portal Superação. 

Eu não sou paciente, nem ex-paciente, mas fui acometida pelo câncer.

Casei em 1987, (foi amor à primeira vista, eu gosto de lembrar desse detalhe) tivemos 3 filhos, passamos por muitos desafios juntos, desde a adaptação à vida de casados, algumas dificuldades financeiras, inseguranças, mas em 2014 tudo mudou. Ele, que era um vendedor raiz, daquele que fideliza, que visita o cliente, resolveu, finalmente depois de dez anos numa sociedade complicada, abrir sua própria empresa e eu decidi acompanhá-lo. Não tinha certeza do que viria pela frente, mas decidi que iria apoiá-lo, por conhecer sua capacidade.

Assim, passamos a trabalhar juntos, nossa convivência passou a ser de praticamente 24 horas por dia. Muita gente duvidou que isso pudesse dar certo, mas por incrível que pareça nossa parceria funcionou muito bem! Foi muito bom para nós, passamos a entender aspectos que até então não conhecíamos do outro. Conheci uma pessoa metódica e preocupada, que nossa convivência diária não permitia perceber.

Em 2016 o pai dele faleceu, a relação entre eles nunca foi tranquila. Tive a sensação que sem o pai ele relaxou, não precisava mais provar nada a ninguém! Ele mudou, ficou mais calmo, mais tolerante, mais amoroso. Estávamos, finalmente tranquilos financeiramente, animados com a perspectiva dos filhos crescidos, batendo asas!

Em 2017, ele estava sentindo umas dores de estômago. Mesmo contrariado foi ao médico, fez exames e se tratou, era uma gastrite, coisa fácil! No final do ano, nossos negócios estavam de vento em popa e ele se dedicando ao trabalho, fazendo parcerias, criando novos caminhos para nós.

Em 2018, o ano prometia: pensávamos em contratar novos funcionários, entre maio e junho ele fez giro pelo Brasil, visitou 10 capitais apresentando nosso produto, foi um sucesso! Na época nossa filha mais velha morava em Florianópolis e ele organizou o calendário para estar no dia do aniversário dela lá. 

Naquele dia, 05 de julho de 2018, ele não estava bem, precisou voltar para o hotel mais cedo, estava com os sintomas de uma virose, bem própria da época, todo mundo teve essa virose naquele ano.

No final de julho os sintomas não tinham passado totalmente. Ele sentia novamente muita azia, dor de estômago, uma mistura da virose com a gastrite de um ano antes.

Ele dizia que logo ia passar, eu insisti muito para que ele fosse ao médico. Ele quis ir a um clínico geral e por algum motivo ele não gostou do médico, ficou muito bravo com as observações do doutor, todas verdadeiras, talvez um tanto ácidas, mas fez os exames pedidos, entre eles uma chapa do pulmão. Apesar de ter parado, ele havia fumado muito. Tínhamos que esperar a imagem ficar pronta, o laudo viria depois. A técnica ficou assustada e mandou ele procurar um pneumologista. 

Um dia antes dessa consulta, acordei com o barulho de uma chuva muito forte, vento e frio. Não vi meu marido na cama e por um segundo me senti viúva. Naquele dia comecei a escrever  um texto sobre isso, nunca consegui terminar.

Passamos alguns dias preocupados até a consulta com esse novo médico, dessa vez ele sentiu segurança e aceitou todas as recomendações. Foi o pneumologista que diagnosticou que meu marido estava com um câncer de intestino, e aí nosso mundo caiu!

Durante a consulta, ele chorou e eu me mantive firme, já no carro tive uma crise de choro, não queria expressar em palavras o que eu estava sentindo, medo, raiva, frustração.

Eu não sabia, mas antes do tratamento existe um caminho a ser percorrido, primeiro os exames e a biópsia, sem ela nada pode ser feito. 

Ele fez questão de falar tudo isso para nossos filhos, queria que todos soubessem por ele, queria que eles soubessem que ele estava disposto a enfrentar tudo que fosse necessário.

Marcamos uma consulta com o oncologista para a segunda-feira seguinte ao resultado da  biópsia.

Não chegamos a ir a essa consulta. Já há alguns dias ele estava passando mal, no domingo ficou péssimo, o levamos ao pronto-socorro, foi hospitalizado com a cirurgia marcada para três dias depois. O prognóstico era péssimo, ele foi desenganado, o cirurgião disse que tinha muita doença, não conseguiram tirar o tumor todo, fizeram um desvio e colocaram uma bolsa de colostomia. Na hora eu não entendi nada, afinal, sempre ouvi falar que câncer de intestino era fácil de tratar! 

Durante os dias no hospital ele estava esperançoso, topou fazer uma dieta para se preparar para o tratamento, até que fomos dragados pela verdade, que já estava sendo dita várias vezes ao dia.

Fui com minha cunhada num médico da confiança dela, e o veredito foi claro: “esse é um câncer novo, seis meses no máximo e os prognósticos aqui não são de anos ou meses, talvez semanas, com certeza é questão de dias”. Virou-se para mim e perguntou:” o que você é dele?”, eu deveria ter respondido: “a viúva”, mas não tive força.

Na volta para o hospital, tinha decido não falar nada sobre essa consulta, deixei que ele tirasse as próprias conclusões, não havia razão para transtorná-lo com “apostas”, afinal não nos foi dada um data!

Nos dias de internação fui tomando consciência que meu marido não sobreviveria. Um dia, num corredor do hospital, escutei alguém falando no telefone: “aí chegou a médica dos cuidados paliativos e ele perguntou: quer dizer que eu vou morrer?. Esse diálogo ficou martelando, no dia seguinte a tal médica apareceu e foi fundamental para nossa história.

Meu marido estava com toda medicação intravenosa, e queria de qualquer jeito que levássemos nossa cachorrinha para visitá-lo. A médica até ajudou com essa ideia, mas resolveu mandá-lo para casa, levei um susto! Como seria isso? A medicação passou a ser oral e em dois dias estávamos em casa.

Nesses últimos dias de vida, desde de o hospital, ele procurou todas as pessoas que queria se despedir, pediu desculpas, se declarou, foi muito otimista!

Toda hora me dizia para fazer uma cara feliz, que ele precisava disso! Se declarou um monte de vezes, disse que nosso amor era a coisa mais forte que ele tinha vivido.

Nesses dias ele providenciou tudo, me fez passar a empresa para meu nome, me fez prometer que eu reformaria nossa casa, entre um monte de coisas, dizia para ele que aquela lista parecia uma gincana!

Durante o período da internação e depois em casa, eu também fui percorrendo um caminho de conscientização, de elaboração. No início, meio entorpecida, talvez não tivesse a real dimensão da situação, mas uma coisa eu tinha certeza: tinha que me manter minimamente positiva! 

Ele queria falar, queria as pessoas por perto, me queria ao seu lado.

Nesses poucos dias pudemos resgatar nossa história, demonstrar nossas fragilidades, curar feridas a muito esquecidas!

Rimos de nós mesmos, revelamos nossos medos e inseguranças, sem vergonha ou qualquer tipo de trava. 

Eu acabei conhecendo um lado meu que nunca tinha se revelado: meu lado prático. Sempre achei que eu era indecisa, medrosa, insegura, agora essa era eu num mundo confortável e seguro! Onde eu estava, precisava ser uma leoa! Não tinha espaço para indecisão! Isso ficou comigo, aprendi a ser mais direta.

Nesse período, ele continuou trabalhando. Ligava para os clientes, fazia negociações, estava ativo, a cabeça a mil por hora, muitas coisas estavam para acontecer!

Ele estava padecendo, achava que chegaria até o Natal, mas não foi isso que aconteceu. Foi ficando cada dia mais fraco, cada dia ele comia menos e foi ficando mais quieto, começou a não querer ver mais ninguém. Ficava chateado quando as pessoas diziam que ele tinha que ter esperança, ser positivo.

Numa noite, quando estava indo dormir, já quase sem conseguir respirar, me perguntou: “você acha que eu tenho que continuar otimista? Eu estou cansado!” Respondi que não se tratava de ninguém, os sentimentos eram dele e ele era livre para sentir-se como quisesse! Que eu estava ao seu lado de qualquer jeito. Talvez essa tenha sido a frase mais difícil de falar, afinal, que mais poderíamos esperar? 

Tinha um remédio que ele tinha que tomar à meia-noite, dose dupla, mas ele preferia tomar um à meia noite e de madrugada, se precisasse, o outro. Normalmente o efeito passava às quatro da manhã. Nesse dia eu acordei às cinco e meia, perguntei se ele queria o remédio. Ele estava muito fraco, ficou na dúvida pois a próxima dose seria às seis e meia, mas tomou. Eu apaguei a luz e dormimos. Desde que voltamos para casa ele respirava com a ajuda do concentrador de oxigênio, que faz um barulho infernal. 

Quando o despertador tocou, meu marido estava na mesma posição que estava quando eu apaguei a luz, mas já não respirava.

Fiquei atordoada, levantei, fui na cozinha colocar água para fazer o café, voltei, abri a janela, fiz um carinho, sua pele ainda estava quentinha, chamei baixinho. 

Chamei minha filha, precisava de alguém perto de mim, desliguei o aparelho.

Eu já estava de luto desde o dia que recebemos o diagnóstico, já havia elaborado muito desse sentimento, mas a gente nunca está preparada para lidar com a morte, essa ruptura tão brusca.

Ele morreu no dia 14 de novembro, véspera do feriado mais esperado do ano, aquele que ia até dia 20. Para a minha surpresa o velório estava cheio, gente de toda parte apareceu, gente que eu nem conhecia. Todos foram unânimes em dizer que ele tinha sido um cara muito bacana, todos tinham muito a agradecer! Isso me confortou, pois ele era assim mesmo, queria ajudar todo mundo! Cada história que eu ouvi aquele dia! Muitas eu conhecia, mas não com a emoção de quem tinha se beneficiado das atitudes dele.

Precisei me recompor, precisava tocar a vida. No dia seguinte, comecei a arrumar os armários, guardar seus pertences, encontrei muitas coisas interessantes. Reconheci ele em cada papel, fotografia, objetos guardados.

Fui invadida por um sentimento de gratidão, eu tive a sorte de amar e ser amada, de ter podido viver a aventura de construir uma vida.

Passado um ano e meio, em plena reconstrução, percebo que encontrei força para seguir em frente pois eu tenho a plena convicção que não ficou nada por falar, nada por resolver, nada!

A vida continua para quem está vivo! Em homenagem à sua existência decidi honrar sua memória, seguir em frente, ter comigo tudo que aprendi nos 30 e poucos anos que pudemos viver juntos! 

Ao longo do caminho encontro pessoas que dizem saber o que eu sinto, falam muito de tristeza, saudade, sofrimento.

Eu gosto de dizer que a dor é inevitável, o sofrimento não!

Gosto de sempre lembrar que eu tive muita sorte por ter vivido tantas coisas, eu preciso honrar esse amor, manter viva aquela energia que eu sentia ao lado dele, cultivando o lado bom da força, que ele tanto gostava de frisar! 

Em julho daquele ano, eu tinha começado um curso de escrita criativa, estava escrevendo Histórias de mulheres reais que me inspiravam. Depois da internação, muitas ideias apareceram, mas não consegui escrever uma única linha. 

Em 2020, fui convidada para participar do Portal SuperAção, para ajudar a escrever os textos do Portal. Não podia nem pensar em começar sem antes contar minha História!

Espero que ela tenha te ajudado e inspirado!

A superação faz parte da vida. Ela está dentro de mim, e dentro de você!